sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Não, você não foi cancelado...



Recentemente o excelente historiador Luiz Antonio Simas fez uma thread em seu perfil no twitter e também deu uma entrevista sobre o “cancelamento”, palavra bem na moda, do Cacique de Ramos, tradicional bloco de carnaval do Rio de Janeiro. 
A princípio, e usando apenas seu perfil pessoal como fonte, também fui um dos que achou absurdo o  "cancelamento" do Cacique. Porém, lendo a entrevista percebi que, infelizmente, caí num ‘bait’ (outro termo da moda) do Simas, ou ele caiu no de alguém e repassou. Enfim, o fato é que o suposto cancelamento do Cacique era baseado em um comentário aleatório. Ou seja, não havia "a turma que iria cancelar", e consequentemente não havia polêmica.

E esse é o ponto. Entendo e concordo com análises sobre a infantilidade, intransigência ou mesmo a pouca efetividade da "cultura do cancelamento". Porém, o que vejo atualmente em alguns perfis, e esse exemplo do Simas ajuda a ilustrar, é o uso da crítica ao "cancelamento" para a criação, e talvez até maior divulgação (funcionou com o Cacique) de falsas polêmicas ou mesmo a tentativa de silenciar debates de fato importantes.

É tipo algum 'influencer', ou algo próximo, pegar um comentário irrelevante de alguém falando em "cancelar", ou algo do tipo, e criar todo um “bait/isca” para maior divulgação, likes, mais seguidores, etc. Exemplo, seria como se eu (irrelevante) fizesse um comentário de que deveríamos "cancelar" o filme O Auto da Compadecida (que adoro, inclusive), a fala passaria despercebida, talvez um like, algumas críticas de amigos dentro da minha bolha e vida que segue. No entanto, alguém com mais seguidores vê isso e usa o que escrevi como base para um textão onde explica o quão absurdo é o meu comentário, algo que será compartilhado por outros e outros… e no fim teremos um monte de gente revoltada, e, por algum motivo, xingando identitários (outra palavrinha na moda que serve bastante como bode expiatório) e afins. Pronto, tá criada uma falsa polêmica, onde não há qualquer embate real de ideias, e sim um comentário (besta ou não) e um monte de textão, piadinha, lacração, xingamento e, principalmente, VEM COMIGO NESSA THREAD, ou seja, masturbação intelectual. 

Outro grande problema da crítica vaga aos supostos "cancelamentos", é que ela serve de muleta para se atacar qualquer crítica real, e bem fundamentada, que lhe desagrade. Um exemplo, se eu, ou qualquer outra pessoa, fizer uma crítica sobre todo o machismo contido na música ‘Faixa Amarela’ de Zeca Pagodinho, a não ser que seja diretamente expresso, em nada significa que estamos “cancelando” ou propondo o "cancelamento" de Zeca (que é excelente), apenas estará sendo apontando algo negativo em uma música sua, e, sinceramente:



... Mas se ela vacilar, 

vou dar um castigo nela 

Vou lhe dar uma banda de frente 
Quebrar cinco dentes e quatro costelas 

Vou pegar a tal faixa amarela
Gravada com o nome dela
E mandar incendiar
Na entrada da favela… 

É meio evidente todo o problema que essa música traz. Inclusive o próprio Martinho da Vila, que também a canta, mudou esse trecho. Ou seja, seria normal e natural um comentário negativo, inclusive, bem pertinente. Mas o que soaria para alguns? claro: "COMO ASSIM TÃO QUERENDO CANCELAR ZECA PAGODINHO", "ESQUERDA IGNORANTE", "IDENTITÁRIOS!", "BOLSONARO GANHARÁ ATÉ 2050!"... etc... etc... Um monte de generalizações e insultos a ‘esquerda cirandeira’, ‘identitários’, ‘esquerda classe média’ (o louco disso é que na maioria das vezes quem o faz é também ‘esquerda classe média'), que, evidente, podem sim ser alvo de críticas. Todavia, com o mínimo de argumentação e não servindo apenas como bode expiatório.

Sei também que os exemplos são recortes e resumos, no ‘mundo real’ nem o cancelamento e muito menos as falsas polêmicas possuem grande clamor. E óbvio, muitos dos comentários (VEM COMIGO) não passam do ego buscando seu biscoito de cada dia, ou de pessoas lutando contra seus espantalhos escada. Porém, mesmo como recortes, esse tipo de anulação de debates e certezas absolutas vão sempre para um caminho, no mínimo, desagradável, e aí não se trata de ‘cancelar’ ou não, e sim de ignorar todo e qualquer debate saudável (palavra que infelizmente não anda muito na moda) por qualquer vitória de Pirro.