sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O não tão admirável mundo novo


Antes de iniciar é sempre bom deixar claro que o texto se trata de um recorte da sociedade, dentro de um contexto pessoal. Obviamente não é uma pesquisa científica e muito menos tem a audácia de tal. Algo, inclusive, bem comum atualmente no ‘mundo digital’.

Mundo digital esse que é um dos temas recorrentes de um autor que gosto bastante, Bruno Latour. Mas não citarei a excelente obra de sua autoria “Jamais Fomos Modernos”, e sim um trecho interessante de uma excelente ótima concedida ano passado:


Diante disso, pode haver uma ideia compartilhada da verdade? 

R. As pessoas se queixam das fake news e da pós-verdade, mas isso não significa que sejamos menos capazes de raciocinar. Para conseguir manter um respeito pelos meios de comunicação, a ciência, as instituições, a autoridade, deve haver um mundo compartilhado. É um tema que estudei no passado. Para que os fatos científicos sejam aceitos, é preciso um mundo de instituições respeitadas. Por exemplo, sobre as vacinas se diz: “Estas pessoas ficaram loucas, estão contra as vacinas.” Mas não é um problema cognitivo, de informação. Os que são contra não serão convencidos com um novo artigo na revista The Lancet. Essas pessoas dizem: “É este mundo contra este outro mundo, e tudo o que se diz no mundo de vocês é falso.”

A parte final da resposta para mim é um indicativo e um resumo interessante sobre a “sociedade conectada” que estamos (claro, com ressalvas). Os avanços tecnológicos e comunicacionais não levaram apenas a criação de “guetos na internet”, que, digamos, estariam restritos a conceitos mais individuais, tipo eu sou pró-aborto ou não. E além disso, cabe destacar que fake news ou ‘pós-verdade’ não é necessariamente algo novo, a comunicação sempre possuiu esses ruídos, através de manipulação direta ou mesmo crenças. Acreditar que comer manga com leite faz mal é um tipo de fakenews bem antiga.

No entanto, atualmente, me parece que avançamos, e de forma bem rápida, para além de crenças ou individualidades. Como bem destaca Latour, foi ‘criado’ um novo paradigma de mundo, onde, nele, diversos fatores são depositados. Não é uma questão de acreditar em alguma teoria (doida ou não) da conspiração, ou mesmo achar que vacina não funciona. Pois, muitos desses fatores em tempos passados implicavam em pontos individuais, não no macro, no social.

Atualmente, voltando a resposta de Latour, você não apenas acredita que vacina não funciona, em geral isso vem acompanhado de uma ideia de globalismo, terraplanismo, anti-ciência, conservadorismo ocidental, etc. É uma gama de fatores sociais e comportamentais, que vão ditar onde estudar, frequentar, o que ler, comer, com quem se relacionar, etc. E o principal, se em dado momento um mantra 'negacionista' era “questione tudo”, atualmente é “questione o outro mundo e o combata!”, não há uma troca hegeliana de visões, e sim, disputa direta. Ataque. E é algo, como podemos ver em representações de governos importantes de grandes nações, que vai além de simples ‘grupos do orkut’. Estão no poder.

E qual seria o problema? Bem, na mesma entrevista Latour traz uma ideia:

P. Os dois mundos valem o mesmo? 

R. Não, mas estão em guerra. É um problema geopolítico. Antes, eram problemas de valores ou ideologia, mas num tabuleiro estável. Agora, não. O mapa está em discussão. “Na América não há problema climático, isso é falso”, diz Trump.

De certo ainda não podemos afirmar que a visão de mundo “anti-globalista” esteja em uma guerra com o “globalismo”, ainda há convivência (cada vez mais abalada), mas, voltando aos valores e algumas mudanças sociais, até onde isso se mantém, se, parafraseando Raul Seixas, “faz o que tu queres a de ser tudo na lei”. Então se a "lei" de determinados grupos/mundo é uma, até onde ela irá tolerar o contraditório? E quando em "lei" é no sentido de convivência social. Por que tolerar ou aceitar o 'mundo não real'?

É sabido que as construções históricas para grandes cisões, algumas bem trágicas, não saem do nada e chegam ao ápice em pouco tempo. E pior, em um ponto onde se nega a história nem podemos dizer que ela se repete como fraude. Até porque, para muitos, ela representa a história de um novo mundo que nunca existiu, de uma realidade de fato paralela, que foi atacada por forças superiores.

Por fim, fica o questionamento central do texto. Numa sociedade, ainda mesmo que embrionária, em que se existem dois paradigmas de realidade, em que existem dois mundos, complexos e com uma gama de representações, quem mediaria esse choque? quem mediaria essa disputa? e, ainda mais, quem julga o julgador?

Ps. O filme que serviu como imagem para o texto é ótimo. Vejam.