É indiscutível a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que completa 80 anos em outubro, na história não só do esporte ou do Brasil, no qual é a pessoa mais conhecida do planeta, mas também no campo simbólico como a figura que é, e deverá ser por muito tempo, a representação da excelência no esporte mais popular do mundo.
Não se discute a relevância de Pelé na história. É um símbolo irrefutável. No
entanto, talvez o último ato de genialidade dele, até ser levado ao panteão
dos deuses, é algo que curiosamente foi ignorado por parte da mídia e sociedade brasileira em geral, que é o Edson, a figura humana, com CPF, erros, acertos e
diversas vulnerabilidades.
Talvez até para facilitar Pelé sempre tentou separar, às vezes até exagerando no uso da terceira
pessoa, a sua figura jurídica (Pelé) da física (Edson), porém, é curioso como isso o foi negado. Diferente de outras figuras famosas, e algumas bem representativas do esporte, da música, do cinema, etc. Para muitos Edson não teve o direito de errar, algo que,
ao meu ver, o fez em diversos momentos. E aí não falo em cometer crimes, falo em erros humanos, em ações normais para qualquer figura que
nasceu pobre no interior de Minas e viu seu mundo dar um 360° tão cedo.
Além de ser criticado pelo que ele fez, Edson também tinha a peculiaridade de ser cobrado
pelo que deixava de fazer. A ele, homem negro, famoso, pairava a obrigação de ser, politicamente, uma espécie de Muhammad
Ali, que o admirava. Ele não tinha escolha. E isso, como falei
antes, me gera no mínimo curiosidade.
Obviamente só ele é Pelé, mas também só
ele é Edson Arantes do Nascimento, e, evidentemente, tem, ou deveria ter, o poder de escolher se deve
ou não se posicionar, o que em geral pouco o fez. Edson sempre esteve próximo de
governos da direita à esquerda, até ministro já foi, mas pouco levantou bandeira ou pediu diretamente voto
para político A ou B, mesmo tendo tendências mais conservadoras, diferente de outras figuras, como Zico, por exemplo, que
é infinitamente mais poupado pelos seus erros de posicionamento ou omissões,
como a de subir em palanque de presidente de uma ditadura que torturou seu irmão.
Mas é claro que o Edson não é o Arthur. Isso tá na cara. A cobrança é
diferente. Assim como ele também não é o Doutor Sócrates, figura importante no
campo esportivo e político, que lutou contra a Ditadura Militar mas que, vejam
só, entre outro erros, típicos de humanos, se rendeu em elogios a um presidente
não democrático, no caso, João Baptista Figueiredo. Ato pouco lembrado em sua biografia, afinal, como disse, somos humanos, e estamos sujeitos a isso.
Às vezes me passa a impressão que para muitos, bem nascidos
e que nunca passaram por 0.1% do que o Edson passou, a importância dele só se
daria se mártir, ou algo parecido, fosse. Como assim o negro mais importante do Brasil e entre os
mais importantes do mundo nunca sofreu nem se quer uma perseguição da CIA (apesar que Pelé já foi investigado pelo governo ditatorial)? Afinal, pra que serve um negro tão importante se não é para falar sobre racismo, não é esse
o tema que eles dominam?
Ou pior, como destacou Roberto Vieira no excelente texto Manuel e Edson:
“Porque Garrincha é visto como inocente e bonachão fora dos
campos? Enquanto Pelé é cobrado em cada esquina a cada escorregão?
Qual a
diferença entre o Edson e o Manuel?
Edson se recusou a reconhecer uma filha.
Parte da torcida o vaia até hoje. Longe do texto elogiar a conduta. Mas
Garrincha abandonou uma penca de filhos. No Brasil, na Suécia, sabe-se lá onde
mais.
Mesmo assim, o ato de Edson é sempre lembrado. E o de Garrincha é
folclorizado. Como o de um bom selvagem.
Em outros campos, Edson foi exemplo de
atleta. Não bebia, não fumava, treinava mais que todo mundo. Enquanto Manuel
era o avesso do avesso do avesso.
Edson que jogou tão machucado quanto Manuel. Ambos
esquartejados. Porém, a imagem do Rei saindo em frangalhos na Copa da
Inglaterra. Depois de lutar com uma perna só diante dos portugueses. É menos
lembrada que a clavícula do Kaiser. Menos glamourizada que os joelhos do
Manuel.
Não se trata aqui de juízo de valores. Pelé e Garrincha são fenomenais, craques, gênios. Edson e Manuel são humanos, falíveis, marias-madalenas. Entretanto. Talvez o motivo da percepção distinta entre Edson e Manuel. Seja outro. Menos inocente – e mais ligado ao preconceito de classes e de cor.
Não se trata aqui de juízo de valores. Pelé e Garrincha são fenomenais, craques, gênios. Edson e Manuel são humanos, falíveis, marias-madalenas. Entretanto. Talvez o motivo da percepção distinta entre Edson e Manuel. Seja outro. Menos inocente – e mais ligado ao preconceito de classes e de cor.
Edson, menino pobre e faminto, negro e inculto. Seria
idolatrado se morresse pobre e entorpecido. Como devem morrer os negros neste
país. Como morreu Garrincha. Mulato inzoneiro alcoolizado e falido. Semideus de um
país que aplaude os seus ídolos do povo. Principalmente quando morrem
miseráveis e esquecidos"...
Faço questão de colocar na íntegra tamanha a perfeição. E, de novo me volta a pergunta, talvez respondida pelo texto de Roberto. Por que só o Edson? Muitos podem lembrar da relação com a filha, atitude da qual, pessoalmente, não teria feito da forma que ele fez, mas, repito, por que só o Edson é cobrado até hoje por um “crime” que outros deuses/humanos como Maradona e Garrincha cometeram? É difícil imaginar que toda a revolta seja porque ele, ao meu ver corretamente nesse ponto, não foi ao velório de uma pessoa com a qual nunca teve qualquer relação, e mesmo que você considere essa uma atitude errada, não seria algo absolutamente... humano?!
Todavia talvez o que mais me chama atenção sobre o Edson é o fato de paradoxalmente ao clamor por ele se posicionar, há a necessidade de sempre silenciar aquele que “calado é um poeta”. E mesmo se ele falasse tanta bobagem como levantam,
o que não o faz, poucas coisas são tão castradoras como silenciar uma pessoa, negar a ela o direito de ter uma opinião, por mais frívola que seja. E não, não
tem como achar que esse tipo de afirmação é “engraçada” ou que não tem nenhuma carga social. Não é algo isolado.
Como disse no início, não é que o Edson, humano que é, não
tenha erros. Não é que ele não poderia ser bem mais importante em temas
fundamentais, e do qual ele viveu, ou ser uma voz importante contra uma
Ditadura. Não é isso. Mas também é que, além de tudo, ele também é, como
muitos outros, um rapaz negro, pobre, que saiu do interior e viu sua vida mudar muito
cedo, ele poderia ser o que muitos pensaram, mas igualmente ele tem o direito
de ser o que escolheu, sem de forma alguma arranhar o mito, pois, antes
de tudo, ele é humano, demasiado Edson.